Li uma resenha na Veja dessa semana sobre o livro do Padre Marcelo, Ágape. Meteram o pau no texto do sacerdote-cantor, meu par. Longe da minha intenção, ocupar o tempo precioso dos meus treze leitores com uma discussão sobre as virtudes literárias ou teológicas do tal livro. Meu interesse é refletir sobre o comentário final da matéria: "fica a impressão de que o Evangelho inteiro cabe numa canção dos Beatles ". Fiquei com raiva do cara. Achei leviana a observação. Depois, aquiesci: cabe mesmo. Não que o mérito seja de Lennon e McCartney. A canção é até boazinha, não a melhor da sua lavra. Na verdade " All you need is love ", com aquela introdução cafona de banda marcial ( até justificada pelo clima pacifista e anti-vietnã: consta que o single for a o resultado de uma encomenda da BBC para a primeira transmissão ao vivo , via satélite, que se tem notícia. Data de 1967 ) nunca me conquistou. O mérito da frase "o Evangelho inteiro cabe numa canção dos Beatles " é do Evangelho, é de Jesus de Nazaré. John e Paul cavaram no inconsciente coletivo da sua herança cristã desprezada e esquecida ( ou seria Graça Comum, pura e simples? ) a verdade mais bela do Cristianismo: a resposta é simples – amor.
A mensagem de Jesus, o resumo da sua proposta, o coração da sua utopia comunitária-social-política, a revoleção de Jesus, como diria Brian MacLaren, é o amor. O amor é o tronco do qual todos os ramos da Vida Boa e Abundante do Reino brota, floresce, frutifica. Todo mundo sabe – ou deveria – que o farisaísmo inflacionou a Torá, a Lei descrita no Pentateuco. Os mandamentos de Deus viraram centenas e centenas. Haja jurisprudência e moralismo religioso! Jesus, com sua capacidade de síntese incomum, mesmo se comparado ao gênio de Sócrates, por exemplo, responde , certo dia, a um jovem em crise espiritual : tudo o que você precisa ( ter ) é amor. A Deus, acima e antes de tudo. Ao próximo como a você mesmo. O amor é tudo. Ponto.
Hoje cedo, café pingado e pão na chapa numa mão, a Folha na outra li com interesse duas colunistas. A primeira, psicanalista, refletia sobre uma crise contemporânea. Com singular felicidade e lucidez de raciocínio Anna Veronica Mautner escreveu: " A oralidade, tenho a impressão, está em crise. Todos fazem de conta que têm o que dizer. O valor das pessoas associa-se mais ao quanto têm a dizer do que ao que têm a dizer (… ) não estou criticando esse vendaval de palavras desnecessárias(…) só quero chamar atenção para esse fenômeno. " Ou seja, a natureza dos talk shows, o recheio das séries, novelas e o caldo grosso do entretenimento da TV, sem falar no sucesso do twitter, vai tudo por aí: " Blá-blá-blá. Ouçam o que eu tenho a dizer ". O que dizemos sobre o amor? Quem dizemos amar? No mesmo jornal a psicóloga, Rosely Sayão denuncia o desaparecimento da infância: "as crianças na atualidade, quando querem brincar não podem e , quando podem, não querem ou nem sabem". Seu argumento algo assustador para um pai ocupado como eu afirma que "a aquisição exagerada de brinquedos colaborou para que a brincadeira ficasse em segundo plano." Pior que é. Tudo o que uma criança precisar é de amor. De mor que se traduza em brincadeira. Não de brinquedos e mais brinquedos, sua iniciação na doença do consumismo. Amar uma criança é permitir que ela seja criança.
Na graduação tive um professor de linguística que marcou minha formação intelectual. Pelo bem e pelo mal. Bem: era brihante, o senhor Alfredo Felipelli. Italiano, cultíssimo. Entendia mais de Saussure e do idioma latino do que os Beatles de hits parades e fama. Seduzia com a bela logicidade cartesiana das suas palestras, com o vigor do seu raciocínio extremamente bem fundamentado et cetera. Mal: fingia que não nos enxergava quando cruzávamos com ele nos corredores da faculdade de letras. Ignóbil é a erudição que nos imagina superiores aos vis mortais que não sabem citar Cícero de cor! Talvez a medida do nosso tão propalado, cantado, propagandeado, alardeado, rimado, pregado, amplificado, anabolizado, maximizado, e no entanto, esvaziado, diminuído, desvalorizado, desmerecido, ridicuralizado, problematizado, empobrecido e desqualificado amor tenha a ver com o modo como lidamos com as pessoas simples, a tal gente humilde, no dia-a-dia ordinário, no chão das coisas e não no mundo das idéias. " Nunca se está diante de alguém comum", dizia C.S.Lewis. Ser cristão é viver segundo o Espírito. O que faz o Espírito Santo em nós, no fundo e na prática da nossa vida cotidiana? A essa pergunta respondeu Thomas Merton, em "No man is an Island" : " Ele nos atrai para o mistério da encarnação e redenção pelo Verbo que se fez carne. Ele não apenas faz-nos compreender algo do amor de Deus manifestado em Cristo como também faz-nos viver mediante a experiência do amor em nosso coração". Resumidamente, é isso. Isso tudo. De fato, o Evangelho cabe numa canção: "tudo o que você precisa é amor". Eu também.
Por Gerson Borges
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